Engraçado como determinadas situações não planejadas têm poder de decisão sobre a capacidade de síntese de algumas pessoas. É o que acontece quase sempre quando o cérebro recebe o merecido descanso e o indivíduo - que passa geralmente metade do dia pensando em coisas "interessantes" -, ganha o prêmio de descobrir uma joia, uma semente relevante, com grandes chances de germinar e se tornar uma árvore frondosa, um assunto que possivelmente será legal e discutível para algumas pessoas com alma de poeta, sensíveis a determinadas percepções de vida.
Foi o que aconteceu em um boteco pequeno, bonito e anônimo da Rua das Árvores, no início de uma noite, quando quatro amigos pedem sopa à dona, que se preparava para encerrar o dia de trabalho. O pedido soou no ar certo receio de vir uma sopa ruim, porém era um risco a se correr e o único lugar aberto no horário. A mulher serviu sem cerimônia e com cara de quem repete uma função mais de cinquenta vezes no dia. A sopa chegou, a turma se animou, mas foi no momento de prova que o pensamento se fez presente; para mim, parte do quarteto.

As personalidades são diversas. Existem aquelas que “descem” maravilhosamente bem, as saborosas e inesquecíveis, as ruins, traumatizantes, aquelas todas cheias de coisas, cascas e sequelas em forma de legumes mal cozidos e pedaços de carne perdidos a flutuar, dramáticos. A sopa é a paixão nacional, gastronômica e emocionalmente falando. Sopas ressuscitam momentos e pessoas inesquecíveis, que na maioria das vezes são ou foram imprescindíveis na nossa vida.
A sopa estava maravilhosa e foi no decorrer desse jantar informal, um desses momentos raros da vida, impossíveis de serem arranjados, que essa reflexão em razão de sopas e pessoas pairou sobre nós. Em um instante, provocados, os outros participantes do jantar concordaram e cultivaram minhas ideias. No mesmo momento surgiram lembranças de mães, avós e lugares com sopas incomuns. Quase sempre, ao lembrar-se das sopas, vinha de brinde uma descrição perspicaz da personalidade dos mestres e mestras queridos que se proponham a cozinhar a iguaria.

Caso esteja saboreando uma sopa e dê de cara com uma dessas memórias afetivas, caro leitor, não se prive de se deliciar com suas viagens. Essa é a ideia. O cozinheiro ou cozinheira que se propõe a preparar tal prato pode até não saber, mas eles passam a ser, além de preparadores de sopa, tecelões de lembranças e sonhos, tão fumegantes e no ponto quanto a sopa que espera convidativa na mesa de um boteco. Um verdadeiro luxo subúrbio-imperial.
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