segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Analogia da sopa




Isaac Moraes

Engraçado como determinadas situações não planejadas têm poder de decisão sobre a capacidade de síntese de algumas pessoas. É o que acontece quase sempre quando o cérebro recebe o merecido descanso e o indivíduo - que passa geralmente metade do dia pensando em coisas "interessantes" -, ganha o prêmio de descobrir uma joia, uma semente relevante, com grandes chances de germinar e se tornar uma árvore frondosa, um assunto que possivelmente será legal e discutível para algumas pessoas com alma de poeta, sensíveis a determinadas percepções de vida.

Foi o que aconteceu em um boteco pequeno, bonito e anônimo da Rua das Árvores, no início de uma noite, quando quatro amigos pedem sopa à dona, que se preparava para encerrar o dia de trabalho. O pedido soou no ar certo receio de vir uma sopa ruim, porém era um risco a se correr e o único lugar aberto no horário. A mulher serviu sem cerimônia e com cara de quem repete uma função mais de cinquenta vezes no dia. A sopa chegou, a turma se animou, mas foi no momento de prova que o pensamento se fez presente; para mim, parte do quarteto.

As sopas são muito mais do que uma porção cheia de nutrientes e um dos pratos mais antigos, simples e populares do mundo. Ela tem a capacidade de refletir almas, essências, resgatar memórias e trazer à tona sensações por vezes esquecidas num arquivo biológico ou coisa que o valha. Repare bem. Nenhuma sopa é igual à outra. Na verdade, elas assumem a identidade de quem as produz. Como um segundo registro geral. É uma impressão digital líquida.

As personalidades são diversas. Existem aquelas que “descem” maravilhosamente bem, as saborosas e inesquecíveis, as ruins, traumatizantes, aquelas todas cheias de coisas, cascas e sequelas em forma de legumes mal cozidos e pedaços de carne perdidos a flutuar, dramáticos. A sopa é a paixão nacional, gastronômica e emocionalmente falando. Sopas ressuscitam momentos e pessoas inesquecíveis, que na maioria das vezes são ou foram imprescindíveis na nossa vida.

A sopa estava maravilhosa e foi no decorrer desse jantar informal, um desses momentos raros da vida, impossíveis de serem arranjados, que essa reflexão em razão de sopas e pessoas pairou sobre nós. Em um instante, provocados, os outros participantes do jantar concordaram e cultivaram minhas ideias. No mesmo momento surgiram lembranças de mães, avós e lugares com sopas incomuns. Quase sempre, ao lembrar-se das sopas, vinha de brinde uma descrição perspicaz da personalidade dos mestres e mestras queridos que se proponham a cozinhar a iguaria.

Nunca alguém tomará uma sopa com o mesmo gosto e, no fundo, no fundo, nós sabemos disso. “Parece a sopa da minha avó, mas ela caprichava no tempero”, “lembra muito a sopa da minha mãe, mas ela pega leve no sal”. Nunca, por mais que se pareça, existe a certeza mortal de encontrar alguém que tenha a capacidade de igualar a sua à outra sopa. Sempre faltará algo, e isso é o melhor.

Caso esteja saboreando uma sopa e dê de cara com uma dessas memórias afetivas, caro leitor, não se prive de se deliciar com suas viagens. Essa é a ideia. O cozinheiro ou cozinheira que se propõe a preparar tal prato pode até não saber, mas eles passam a ser, além de preparadores de sopa, tecelões de lembranças e sonhos, tão fumegantes e no ponto quanto a sopa que espera convidativa na mesa de um boteco. Um verdadeiro luxo subúrbio-imperial.

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