terça-feira, 3 de novembro de 2009

A trajetória da morte nos bairros do Prado e Trapiche




Renato Medeiros

Passos lentos acompanham o caixão que segue pela Av. Siqueira Campos em direção ao Cemitério São José. Esta cena se repete há décadas nos bairros maceioenses do Prado e do Trapiche da Barra e ainda hoje é comum aos seus moradores, mesmo que destoe do estilo de vida contemporânea em que estes lugares se encontram atualmente.

Em seus domínios parece se concentrar uma verdadeira indústria da morte. Não é que haja necessariamente matadores de aluguel ou coisa parecida, mas sim entidades, órgãos e empresas que lidam com a morte diariamente. É possível perceber uma trajetória bem definida, um ciclo que não cansa de se repetir.

A trajetória começa nas salas de aula do Instituto de Ciências Biológicas e da Saúde (ICBS) da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e também na Universidade Estadual de Ciências da Saúde de Alagoas (Uncisal). Localizadas no Prado e no Trapiche, respectivamente, essas duas escolas abrigam cursos como Medicina e Enfermagem e são responsáveis por formar profissionais autorizados a cuidar da saúde humana e salvar vidas quando necessário.

Depois vêm os hospitais instalados na região. Eles recebem vítimas de todas as enfermidades e acidentes. É lá que trabalham vários dos profissionais da saúde formados nas duas universidades citadas. O Trapiche tem a vantagem de contar com o maior hospital público de Alagoas, o Hospital Geral do Estado (HGE). Já o Prado não tem hospital, embora a Santa Casa de Misericórdia, com sede própria no Centro, ocupe alguns prédios e casas na fronteira com aquele bairro.

Se no hospital tudo der certo, o paciente logo terá alta e apenas precisará tomar algum eventual medicamento. Não importa qual a intensidade da dor, alguma das inúmeras farmácias de ambos os bairros provavelmente terá algum remédio que possa amenizá-la.

Contudo, se os remédios falharem e se por ventura houver falecimento, não vai faltar funerária com portas e caixões abertos para receber o corpo desfalecido. Afinal, este é outro ramo comercial em franca ascensão naquela parte da cidade. Porém, antes talvez seja preciso dar um pulinho no Instituto Médico Legal (IML), que é vizinho à Faculdade de Medicina da Ufal. Coincidência, não?

Os trâmites funerários ocorrerão com maior eficiência se, em vida, o defunto tiver feito um plano funerário parcelado em suaves prestações mensais de R$25,00. A empresa que facilita a vida na hora da morte é a Pré-Vida, especializada em garantir que o corpo chegue bem à cova.

Se o plano foi feito, ótimo! Agora o morto já pode ser velado com tranquilidade na Central de Velórios, no Prado. Lá é possível realizar três ou quatro velórios ao mesmo tempo. Mas se a família preferir, afinal o defunto já não terá poderes de escolha, o velório também poderá ser feito no Planvida ou no Rosa de Saron, que são suas concorrentes e quase vizinhas, diga-se de passagem.

Embora seja um momento de muita dor, os assessores da morte estarão sempre limpos, arrumados e prontos para passar a ideia de que aquele ente ou amigo querido está indo para um lugar melhor. Não, eles não vão pensar em dinheiro. De maneira alguma.

Finalmente chegou a hora da cena descrita no primeiro parágrafo: a marcha funerária, que contrasta com a agitação de carros na avenida, com os vendedores de frutas e com os transeuntes apressados dirigindo-se ao ponto de ônibus. E a morte bem ali, acontecendo em meio à vida. Poucos são os que param para observar. A maioria já está acostumada, tudo aquilo passa despercebido. Entretanto, os poucos que observam provavelmente têm a sensação de que se trata de uma cena antiga, talvez comum apenas no interior de Alagoas.

Nesses enterros da capital ninguém mais veste preto, já não são ouvidos choros intensos, não há mais os olhares provincianos curiosos. Mas o enterro está lá, todos os dias, insistindo em transportar os dois bairros para um passado glorioso, em que viveram seus momentos de destaque na cidade. Agora eles são assim meio esquecidos, lembrados apenas nos dias de finados ou de jogos de futebol no Estádio Rei Pelé.

Mas se engana quem pensa que a trajetória acaba com o sepultamento. O Prado e o Trapiche contam também com uma forte tradição em Centros Espíritas, encarregados de estudar e até mesmo mediar o contato entre vivos e mortos. O mais conhecido é o Centro Espírita William Crookes, localizado em frente ao Cemitério Municipal Nossa Senhora da Piedade, no Prado.

Esse cemitério abriga catacumbas com grandes imagens de mármore e gesso que podem ser vistas até mesmo da avenida. Inclusive é lá que está enterrada a jovem Carolina, ou melhor, a Mulher-da-capa-preta, uma das lendas urbanas mais antigas de Maceió. Mas essa história vai ter que ficar para depois.

2 comentários:

L.A. Emery | 5 de novembro de 2009 às 01:13

De fato, o relato aí não altera nenhuma vírgula do que se passa na real. Só faltou falar dos escândalos do momento final... a mãe querendo ir junto na cova e tals, coisas de enterro de pobre e zás...
E parabéns, Renato, gostei muito do seu jeito de escrever.

Kristhyna KT | 9 de outubro de 2010 às 13:36

Muito interessante a crônica urbana narrada brilhantemente pelo Renato Medeiros, que, em um texto enxuto, narra a contínua trajetória da vida em torno da morte inevitável... esse é o fim, para uns, o recomeço, para outros, e uma passagem, para mais alguns. Parabéns por perceber que o "de cujus" não é mais velado e acompanhado a sua derradeira morada, se não for transferido ao ossário dando lugar a outro que chega à morte, com seu direito básico ao choro reservado e cheio de sentimento e às pessoas em roupas mais apropriadas... Mesmo nas altas castas, o desfile de "moda praia" é intenso e algo desolador... As pessoas deixaram de receber a orientação de seu pais e avós, e não há livro de etiqueta da Danusa Leão, de como se portar nessas ocasiões. Até as piadas, piadas e as risadas escandalosas são ouvidas.
Vale uma publicação nos jornais de grande circulação e em caderno especial sobre o tema!!!

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