quinta-feira, 5 de novembro de 2009

A arte nossa de cada dia


Um dia na vida de dona Maria José, uma vendedora de macaxeira que faz verdadeiros malabarismos todos os dias na luta pela sobrevivência

Daniella Pontes

Ela notara minha presença ansiosa e quieta, ali do lado. Eu aguardava a concretização do negócio: um quilo de macaxeira vendido a um real e cinquenta centavos. E foi com simpatia e boa vontade que dona Maria José Silva Ferreira me atendeu naquela sexta-feira.

Aos 29 anos, casada e com cinco filhos, a moça de União dos Palmares acorda todos os dias às cinco e meia da manhã para o início de mais um dia de trabalho. Ela levanta, lava o rosto para tirar o sono, vai para a cozinha, prepara o parco café da manhã dos filhos e do marido e dá “uma varridinha na casa, só para tirar o pó”.

Concluídas as primeiras atividades do dia, dona Maria José vai ao quarto das crianças acordá-las para outro dia de escola. A primogênita, de onze anos, não dá trabalho para sair da cama. O mesmo não acontece com Júnior, de seis anos, que hesita em levantar. O mais novo, de apenas um ano, dorme tranquilamente no quarto do casal.

Com um banheiro só, os dois casais de filhos fazem fila para o banho. A hierarquia decrescente e feminista é seguida à risca: Gisele, a mais velha, banha-se primeiro. Depois de Viviane, a segunda da ordem, é a vez de Valter. Por último, Júnior – com expressão bastante sonolenta – é quem entra no banheiro.

A mesa, servida de pão, margarina, café e leite em pó, é arrumada com muito esmero pela dona-de-casa. Tudo é muito humilde. A família come silenciosamente. Talvez pelos resquícios de sono, talvez por falta de assunto. Talvez porque o que interessa naquele momento é a refeição.

O marido de dona Maria José, seu Cícero, sai de casa muito cedo. Acorda antes do nascer do sol para trabalhar. Conseguiu um “bico” de servente de pedreiro e precisava chegar cedo à obra. O dinheiro ajuda nas contas da casa.

Vendendo macaxeira na feira de alimentos do Tabuleiro, o casal conseguia um salário mínimo. Só o aluguel da casa - 160 reais -, abocanha grande parte do dinheiro. Os 305 reais que sobram têm de ser suficientes para colocar comida na mesa, pagar conta de água e luz, comprar o botijão de gás, vestir as crianças e comprar remédio quando acontece de alguém adoecer.

Dona Maria José e seu Cícero são verdadeiros artistas. Fazem um malabarismo financeiro quase inacreditável para sobreviver dignamente.

Depois da primeira refeição do dia, os quatro filhos de dona Maria seguem para a escola. Não é muito próximo de casa, as crianças andam durante 25 minutos. Desde cedo, aprenderam a lutar pela vida. Herdaram dos pais a força necessária para enfrentar a caminhada.

Enquanto isso, dona Maria José começa a limpeza da casa. O banheiro é o primeiro da lista: “esses meninos não sabem tomar banho sem molhar tudo! Depois que eles saem fica tudo uma imundície!”. Em seguida é a vez da cozinha. Pratos e chão são lavados.

Dona Maria diz que gosta de cuidar da casa. “Tem que cuidar sim, porque é a única coisa que a gente tem. Quer dizer, nem da gente é mesmo, é alugada, né? Mas a gente cuida como se fosse da gente”, afirma.



O resto da manhã é de trabalho duro na manutenção da casa alugada. Dona Maria ainda varre o chão outra vez – agora com mais disposição -, passa o pano, limpa os (poucos) móveis e o minúsculo quintal, lava a roupa suja e retorna à cozinha, onde prepara o almoço da família. A principal refeição do dia é composta de arroz branco, feijão (“um pouquinho pra cada um, porque tá muito caro”), refogado de salsicha e salada de alface e tomate.

Depois do almoço, nada de sesta: a jornada de trabalho do casal continua. Dona Maria José e seu Cícero – que já voltou do “bico” na obra - vendem em pontos diferentes da feira. Ele em frente a um mercadinho; ela, quase ao lado, em frente a uma loja de sapatos chamada El Shadai. Nome sugestivo para quem, como nossa protagonista, tem fé na vida, apesar de tudo. “El Shadai” significa Deus todo poderoso.

Dona Maria conta porque prefere vender nesta parte da feira: “Eles colocaram a gente lá pra trás, do lado dos banheiros. Assim a gente num vende nem um quilo de macaxeira”. Cada um monta sua barraca – que na verdade é uma carroça guarnecida de um guarda-chuva – e fica à espera daqueles que virão comprar parte de seus jantares.

O produto vem do interior do Estado. Dona Maria e seu Cícero compram de um senhor que, por sua vez, compra de um pequeno produtor da cidade de Arapiraca. A macaxeira vem de longe e passa por outras mãos antes de ser disposta nas barracas do casal. O lucro deles é baixo, pois o produto passa por intermediários, o que o torna mais caro.

Na verdade, dona Maria e seu Cícero queriam mesmo era um “pedacinho de terra pra plantar macaxeira, inhame, batata...”. No local onde eles ficam na feira, a prefeitura só permite a venda destas raízes. Se forem pegos pela fiscalização vendendo frutas, legumes ou qualquer outro produto, são obrigados a pagar uma multa que eles preferem nem saber o valor.

Dona Maria José sonhava em ser juíza, mas só estudou até a terceira série do ensino fundamental. Seus sonhos foram deixados para trás diante das necessidades financeiras da família – constituída há tanto tempo que ela nem lembra quando. Agora, tudo o que resta para ela é sonhar os sonhos dos filhos.

 “A Gisele diz que quer ser professora, mas tem dia que quer ser veterinária. É muito novinha ainda, tem muito chão pela frente.”. E o pai completa: “Enquanto eu puder sustentar ela, a vida dela vai ser só pros estudos. Quero ver minha filha uma doutora”.

Apesar de ter uma vida tão dura, dona Maria José não se deixa abalar com os problemas cotidianos. Enquanto esperava para conversar com a feirante, não pude deixar de escutar sua conversa com uma cliente. “Ah, mulher, apois se fosse eu, chamava era a polícia, dizia que tinha uma mulher querendo me matar com uma faca”, disse a compradora.

O fato é que dona Maria José costumava comprar panos de prato e detergentes caseiros a uma moça que também vende na feira. Deixou de comprar porque o orçamento ficou apertado e, como boa dona-de-casa que é, dona Maria cortou os excessos. A vendedora de produtos artesanais interpretou como uma desfeita pessoal e agrediu a vendedora de macaxeiras verbalmente.

A outra parte envolvida no imbróglio não foi ouvida e, de acordo com a esposa de seu Cícero, o problema vai ser resolvido pelos maridos de ambas as vendedoras. “Eu mandei o Ciço falar com o marido dela porque se ela tá na rua e num tá trabalhando, tá empatando os outros de ganhar seu pão, ele tem que saber”, argumentou.

E mais um dia da vida de dona Maria José se encerra: depois da jornada dupla de trabalho, do problema com a colega de ofício, às 19 horas ela recolhe a mercadoria e se despede com um sorriso largo no rosto e um abraço caloroso. Vai voltar para a casa alugada, para os filhos e para a vida que, de algum modo, Dona Maria José aprendeu a levar.

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